Pesquisa – Escrita e Cultura do Livro

Livros sobre Livros de Cleber Teixeira: EIXO 1 – Cultura do livro: Bibliofilia

 

Fabular os sinais, ler a carta inacessível

Patrícia Galelli

Era como se soubesse de uma carta para mim. Uma carta guardada dentro de um envelope invisível. Não posso ver o envelope, assim como não posso abrir a carta, mas a carta existe. O que moveu minha busca foi tentar ler essa correspondência inscrita na biblioteca particular, descobrir o gesto leitor de Cleber Teixeira.

Sempre como uma primeira vez, a continuidade como um recomeço. As idas à Biblioteca e a procura em meio ao recorte de “Livros sobre livros”, a Biblioteca viva, como se os livros se lessem a si, mudassem de lugar, se comparassem. A continuidade feita de exercícios sempre inaugurais no processo de anotar impressões, fragmentos, de seguir o querer repentino, ou qualquer impulso ainda inexplicável, confiar na presença pressentida sobre o papel, uma presença entre livros, essa coragem de errar na leitura, uma certeza dessa espécie de carta. Fui à Biblioteca de Cleber e só pude ler como presságio, arriscar a adivinhação para ler, entre os livros, a presença de seu leitor ausente.

Por acaso, vestígios

 

O Eixo 1 – “Escrita e Cultura do Livro” – era a minha premissa no projeto de pesquisa “Livros sobre Livros de Cleber Teixeira”, elaborado no primeiro semestre de 2020. Pesquisa atravessada pela pandemia, contra o tempo sempre entrecortado, à procura dos vestígios de um leitor que não está mais, no entremeio de uma vida atravessada por um país afundado em incoerências. Mas era o ímpeto.

E com o ímpeto veio o desvio. Nas primeiras visitas à Biblioteca de Cleber, no universo de cerca de 8 mil livros, encontrar o recorte catalogado como “Livros sobre Livros”, com quase 500 exemplares, não tornou as coisas mais fáceis. Instaurei, assim, um método particular, entre o tato e a audição, uma escuta do inaudito, e um lance de dados com o acaso, para buscar sinais da leitura de Cleber, algo que “falasse” comigo.

 

O infinito de três

De lado a outro na biblioteca confabulei com Baudelaire, comecei flanando. Mas, diferente da cidade, flanar numa biblioteca é parar mais do que andar. Nessas demoras, confabulei com Duchamp, lembrei da máxima de que, ao alcançar o três, tem-se o infinito. Em frente às duas estantes de Livros sobre Livros, flanei com as mãos sobre o acaso. Como escolher o livro pela lombada? Três livros tocados, três livros escolhidos. Os três livros que efetivamente abririam a pesquisa.

O primeiro, “Escritos y dichos sobre el libro”, de Manuel Bartolomé e María Vidal, pela Editora Edhasa, de Barcelona, me traz a epígrafe de Luis García Montero: “A leitura é muito mais do que uma simples relação dos olhos com os livros…A leitura é um espaço, um lugar preferido, uma luz escolhida, um ritual em que até a época do ano importa”. Nesse espaço de leitura, nenhuma marcação de Cleber, nem a lápis, nem à caneta, qualquer marca de texto. O que se repetiu com o segundo livro, feito do capítulo 24 de “Parerga und Paralipomena” (1851), “Sobre livros e leitura – Über lesen Und Bücher”, de Arthur Schopenhauer, pela Editora Paraula, tradução de Philippe Humblé e Walter Carlos Costa.

Paro no verbete 291, que discorre sobre a perda da capacidade de pensar por conta própria por aquele que lê muito, quase o dia inteiro. “Leram até ficar estúpidos”, ou a relação paradoxal da leitura, em que “quanto mais lemos menos rastro deixa no espírito aquilo que lemos – como um quadro negro, no qual muitas coisas foram escritas umas sobre as outras”. Não se chega à ruminação. Novas leituras aceleram o esquecimento do já lido. Fiquei me perguntando que livros sobre o tema “livros e leitura” eram os preferidos de Cleber. Não tenho muito mais a fazer do que seguir a indicação de Schopenhauer, pensei. “Acrescente-se a tudo isso que os pensamentos postos no papel nada mais são que pegadas de um caminhante na areia: vemos o caminho que percorreu, mas para sabermos o que ele viu nesse caminho precisamos usar os nossos próprios olhos” (p. 17-21). Pelo tempo, ler tudo na biblioteca é nada ler.

Foi no terceiro livro que pude inaugurar meus olhos, chamada pelo amarronzado da capa, cor lentamente conquistada desde 1960 também nas bordas das páginas. Foi nesta antologia realizada pela Secretaría de Hacienda y Crédito Público, Direccion General de Prensa, Memoria, Bibliotecas e Publicaciones do México, chamada “Los escritores y los libros”, que encontrei três sinais de Cleber, que finalmente via o registro de sua passagem, o vestígio de seu idioma de leitor. Como acabava de ler em Schopenhauer, as “pegadas do caminhante” apareceram, ou melhor, os rastros de quem seguiu o caminhante antes de mim – e o inaudito foi, na verdade, visto. Uma nova confabulação, a que criaria finalmente minha interlocução endereçada a Cleber. Eu ouvia os sinais da carta inacessível – mas vendo é que encontraria os fragmentos espalhados por todo o percurso do leitor nas estantes disfarçadas de envelope invisível.

Terceiro livro, três vestígios

 

  1. Uma pequena tira de papel em branco marcando o texto “Los incunables”, por Manuel de Olaguibel, na página 73.
  1. Um pequeno retângulo-rascunho entre as páginas 74 e 75. Num dos lados escrito “Reclames”, com o final do “s” mais longo e um pequeno sublinhado flutuando. No outro lado, um recado para si mesmo.

 

  1. Outra pequena tira, um pouco manchada num dos lados, marcando a página 223, o texto “El bibliómano”, por José Juan Tablada.

Primeiro e segundo sinais

Na antologia que apontou o idioma do Cleber-leitor, o trecho do texto que se conecta com o lado da tira em que escreve “Reclames” é este:

Em 1469 Juan de Spira obteve o privilégio para imprimir em Veneza. Uma das edições deste impressor se faz notável entre todas, por ser o primeiro livro em que se encontram os “reclames”, ou seja, “reclamantes”, palavras que se imprimiram durante muito tempo na parte inferior do “verso”, para serem reproduzidas na parte superior da “frente” da página seguinte; assim como também se considera a primeira obra impressa com numeração das páginas. Este livro é o Tácito, sem data, mas que se acredita ser de 1468 ou 1469, ainda que haja quem assegure que o primeiro livro publicado com a paginação impressa é “Sermo and populum predicabilis” “…om 4º…Colonia…Ter-Hoernen…1470 (2004, p.74).

No verso deste mesmo pedaço de papel, o recado para si mesmo, dizia:

MANDAR PARA O

MINDLIN:

REFENCIA  [rabiscada por esquecer a sílaba “rên”]

REFERÊNCIA AO LIVRO

THE MAKING…:

WILSON, ADRIAN. The making of the Nurem

berg chronicle.

Introdução de Peter

Zahn. Amsterdan,

1976

Por um momento pensei que poderia encontrar a Crônica de Nuremberg em algum lugar da Biblioteca, ou o livro sobre isso citado no bilhete; e eu não saberia precisar se a ideia me instigava mais por seguir uma pista e encontrar um tesouro sobre o objeto da minha pesquisa, ou se porque, ao encontrar o tesouro, eu teria acesso pela primeira vez a um dos incunábulos mais importantes da história da impressão. O fato é que o primeiro sinal de Cleber marcava o texto “Los Incunables”, de Manuel de Olaguíbel (1845-1900), escritor, poeta e juiz, e também um recado para o amigo bibliófilo José Mindlin.

Olaguíbel publicou este texto pela primeira vez como “Impressões célebres e livros raros”, em 1884. Agora, parte da antologia, recebeu o título de “Os incunábulos”, e discorre sobre a migração de impressores da Mogúncia de Gutenberg para outras cidades da Alemanha e da Itália. Incunábulo, do latim incunabulum – berço, começo, princípio – “qualquer livro impresso desde os primeiros anos da arte de imprimir até o ano de 1500”, edições muito apreciadas por bibliófilos.

No terceiro parágrafo do texto, Olaguíbel cita que a cidade de “Nuremberg teve também, em pouco tempo, sua primeira imprensa, sendo o seu fundador Antonio Koburger ou Coburger. Esta mesma cidade, que viu nascer o célebre pintor Alberto Durero [Albrecht Dührer], conta ele no número de seus gravadores e impressores”.

O texto não faz qualquer referência ao incunábulo Liber Chronicarum, que ficou conhecido como Crônica de Nuremberg, da anotação de Cleber no verso do bilhete “Reclames”, mas é este trecho que podemos supor ter chamado sua atenção. O Liber Chronicarum, impresso em 1493, na oficina de Anton Koberger, é um dos livros mais importantes dos primeiros anos de impressão, com 1.809 xilogravuras, produzidas a partir de 645 blocos, ilustrando o texto de Hartmann Schedel (1440-1514), médico e bibliófilo de Nuremberg, que escreveu a crônica e que, embora humanista e com acesso a fontes clássicas latinas, seguiu a tradição medieval de copiar de várias fontes, começando no Livro do Gênesis e continuando através da história bíblica e romana até a contemporânea de Nuremberg, deixando páginas em branco para o leitor preencher antes de terminar seu texto com o Apocalipse. Encadernada em pele de porco, a produção da Crônica de Nuremberg teve, além de exemplares, informações preservadas, como contratos firmados pelos comerciantes Sebald Schreyer (1446-1520) e Sebastian Kammermaister (1446-1503), que financiaram a impressão e contrataram os artistas Michael Wolgemut (1434-1519) e Wilhelm Pleydenwurff. Albrecht Dürer (1471-1528) foi aprendiz de Wolgemut e provavelmente esteve envolvido no projeto, que teve sua versão em latim traduzida para o alemão por Georg Alt. Uma edição integral pode ser acessada no site da Biblioteca do Congresso dos EUA, no link

https://www.loc.gov/resource/gdcwdl.wdl_04108/?st=gallery.

No prefácio do livro “Memórias esparsas de uma Biblioteca”, com José Mindlin, a partir de entrevista para Cleber Teixeira e Dorothée de Bruchard, se referindo à biblioteca particular de Mindlin, Cleber escreveu:

Vivi momentos inesquecíveis naquele santuário dos livros. E tivesse eu que citar apenas um desses momentos para imortalizá-lo na palavra impressa, lembro a tarde em que Mindlin depositou em minhas mãos o Hypnerotomachia Poliphili (O sonho de Polifilo), de Francesco Collona, um dos incunábulos mais preciosos da biblioteca, editado por Aldus Manutius em 1499. Não foram poucas as raridades da biblioteca de Mindlin que folheei (cito só três para não me alongar: Crônica de Nuremberg, a primeira edição d’Os Lusíadas, os originais de Grande Sertão: Veredas) mas ter nas mãos um livro no qual Aldus deve ter tocado é uma emoção inesquecível que devo a esse homem admirável que não faz nada sem alegria, o bibliófilo e escritor José Mindlin (2004, p.19).

Esses achados e a leitura do texto de Cleber, além do interesse compartilhado com o amigo-bibliófilo José Mindlin, reforçam meu método de pesquisa – o da especulação que embasa a fabulação, nada de científico, mas imaginativo, motor de um mesmo deslumbre de alguém apaixonado por livros. Afinando o olhar para perceber o caminho, e ler este idioma novo, recebo das gavetas de tipos usados na composição de livros da Editora Noa Noa, uma validação. Era do desejo de Cleber ser reconhecido não apenas como impressor e gravador, mas também como bibliófilo.

Nos recortes colados nas gavetas de Corpo 20, temos:

Gaveta 2: Oficina do impressor, do gravador e do

bibliófilo. EDITORA NOA NOA

Gaveta 3: Oficina do impressor, do gravador e do

bibliófilo. EDITORA NOA NOA

Gaveta 4: Livros PaRa BiblIÓFiLoS

Oficina do impressor, do gravador e do

bibliófilo. EDITORA NOA NOA

A partir desses indícios e primeiros vestígios, resolvo me concentrar nas duas prateleiras de livros sobre bibliotecas e bibliófilos. A primeira parte da carta que imaginei me esperar foi compreendida. Unindo à dica de Schopenhauer, para não inscrever umas leituras sobre as outras no “quadro negro”, resolvo selecionar os livros e as leituras a partir dos sinais de Cleber: do seu idioma cujo código são tiras de papel entre páginas, sem a menor marca nos livros. Mais uma evidência do seu perfil bibliófilo – o de manter exemplares intocados. O idioma de Cleber é o de quem é a um só tempo leitor e bibliófilo: o de quem, como leitor, troca marcações de leituras nos encontros de café com amigos; e o de quem, no café com amigos, pode conversar sobre edições cuidadas e preservadas do rastro do leitor, como bibliófilo.

 

 

Da febre por esses livros

Retomo a antologia “Los escritores y los libros”, para trazer o terceiro vestígio de Cleber marcando o texto “El Bibliómano”, de José Juan Tablada (1871-1945) – jornalista, escritor, diplomata e tradutor, que introduziu o haiku na poesia castelhana, vinculado ao modernismo, aficionado por pintura e que também fazia caligramas. Um conto triste sobre um bibliófilo que já não encontra livros e morre “na miséria mais trágica”, recebendo cuidados paliativos, no fim da vida, de um amigo alemão, colega de bibliofilia, este amigo que “esteve checando sua agonia e dando-lhe algum dinheiro que depois se pagou com os melhores livros de sua rara e valiosa coleção”. Texto de 1901, que me fez pensar o que Cleber deve ter achado deste conto para tê-lo marcado, quando será que o leu? E será que o relacionou ao livreiro Giácomo, de “Bibliomania”, escrito por Gustave Flaubert, que amava tanto seus “filhos”, os manuscritos – febril que ficava pela paixão das datas antigas e ilegíveis, “os caracteres góticos bizarros e estranhos, as pesadas douradas; suas páginas cobertas pelo pó, pó cujo perfume, suave e delicado, aspirava com delícia”. A paixão que lhe absorvia por completo, que lhe fez protagonizar, na ficção do escritor francês, a série de assassinatos de um outro livreiro, dom Vicente, que acabou condenado à morte em Barcelona, noticiado pela “Gazette des Tribunaux”, em 1836.

Como Christian Prigent escreve sobre o trabalho de Muriel Pic, que realiza montagens fotográficas de livros de escritores, as imagens de livros “não nos mostram os homens ‘feitos de livros’, mas os próprios livros, cuja acumulação mais ou menos ordenada constitui a biblioteca de um homem. […] Assim, elas também mostram, a seu modo, esse homem”. Não é que a biblioteca o represente, mas pode significar “o homem que leu esses livros ou que os teve no seu entorno, que habitou o espaço construído por eles e que neles enroscou seu corpo, como num exoesqueleto de sua vida mental” (2015, p.7-8). Persigo os sinais.

 

 

Bibliofilia > Bibliomania

 

Outro livro com marcas do Cleber é o de Sigfred Taubert, intitulado “Bibliopola I –  Bilder und Texte aus der Welt des Buchhandels / Pictures and Texts about the Book Trade / Images et Textes sur la Librairie”, publicação trilíngue da Dr. Ernst Hauswedell & Co Hamburg, na Alemanha, em 1966. Neste livro de imagens e textos sobre o comércio de livros, Cleber deixa vestígio entre as páginas 72 e 73, que discorrem sobre o verbete “Theft (194-197) / “Le vol” (194-197) / “Diebstahl” (194-197): ou seja, “Roubo” (194-197).

No verbete, temos que, enquanto houver amantes de livros, enquanto a paixão por livros continuar sendo um de nossos prazeres intelectuais e estéticos, algumas pessoas serão tentadas a obter livros por meios ilegais. Isso está longe de ser exagero, com inúmeros casos de biblio-cleptomania no passado, sendo possível citar Libri, em Paris, e o famoso pastor Tinius, que “perdeu sua alma cem anos atrás”, quando sua paixão por livros o transformou em um ladrão e criminoso comum.

O comércio de livros sempre sofreu com o roubo de livros, à revelia das estratégias do livreiro de ir contra os ladrões, que muitas vezes estavam entre seus clientes mais valiosos, alguns deles tinham uma reputação tão boa que era impensável acusá-los publicamente. Relatos desses eventos geralmente são sutis, por conta da natureza clandestina do assunto, e os detalhes são deixados para a imaginação.

O verbete aponta a dificuldade de encontrar imagens sobre isso, era raro o tema do roubo em livraria ser retratado por um artista. Nos esparsos registros encontrados, no entanto, é possível apontar dois processos distintos. O do fanático pelo livro, que adentra ao fascínio de ser transportado a outro mundo pelo livro, fazendo-o alheio ao tempo e ao lugar, é um deles. Muito se falou sobre a vastidão do homem que fica remexendo entre os livros expostos e finalmente se perde no texto de um exemplar. Mas às vezes o resultado não era tão inofensivo. Havia malandros que exploravam a preocupação do bibliomaníaco para seus propósitos. O exemplo mais famoso é o detalhe do desenho de Cruikshank em “Oliver Twist” (195). Este será sempre o protótipo do roubo não de um livro em si, mas realizado com a ajuda do próprio livro, pela sua “atração fatal”.

Os cantos escuros e inacessíveis da loja, combinados com a desatenção por parte do livreiro, é outra situação propícia ao furto de livros. Os livros em uma banca aberta são outra grande tentação.

A única imagem de um roubo desse tipo é do início do século XIX (196), que retrata dois meninos “agarrando a oportunidade pelo topete”, embolsando alguns volumes e “pegando-os nos calcanhares”. Nesse caso, provavelmente foram movidos não mais do que por uma paixão superficial, quem sabe isso possa ter causado algum peso na consciência, de modo a não terem repetido a façanha. Quem sabe.

Por outro lado, uma ilustração moderna (197) é inteiramente dedicada ao assunto do roubo de livros. “O livreiro não está prestando atenção – ele está lendo as últimas notícias – e rápido como um relâmpago um cliente de moral um pouco instável enfia um livro no bolso interno de sua jaqueta”. No verbete o autor aponta estar ciente de que trouxe apenas alguns casos simples e primitivos de furto no comércio de livros e que, na vida real, os métodos e possibilidades são de variedade notável e em grande volume.

Vaga escolha pessoal, pontos que se tocam

 

A mão, minha flâneur incontornável, pega da estante de “Livros sobre Livros” o “Memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia”, de Umberto Eco. Uma tríade se apresenta, com o escritor contando possuir um exemplar de “Crônica de Nuremberg” e, adiante, para meu espanto, discorrer muito naturalmente sobre o roubo de livros. É Eco que explica quem foi Libri, o nome que apareceu no verbete marcado por Cleber em Biblipola I. Era um matemático italiano, cidadão francês e “ladrão exagerado de livros”. A diferença entre o bibliômano, o que rouba livros, e o bibliófilo, apaixonado por eles, é explicada. Diferente do ladrão, “o bibliófilo considera que, se para ter um livro não realizou um sacrifício, não há prazer na conquista”.

O bibliômano rouba livros com gesto desenvolto enquanto conversa com o livreiro: aponta-lhe uma edição rara na prateleira alta e faz sumir outra, igualmente rara, embaixo do paletó; ou então corta com gilete as páginas mais apetecíveis. Eu me orgulho de possuir uma Crônica de Nuremberg com a cobiçada estampa treze monstros, ao passo que numa biblioteca de Cambridge vi um exemplar sem essa estampa, cortada e levada por um bibliômano endemoniado. Existem pessoas de boa cultura, satisfatória condição econômica, fama pública e reputação quase imaculada, que roubam livros. Roubam por incontível paixão e gosto pelo calafrio, como os ladrões fidalgos que só roubam joias famosas. O ladrão bibliômano se envergonharia de roubar uma pera da barraca do quitandeiro, mas julga excitante e cavalheiresco roubar livros, como se a dignidade do objeto desculpasse o furto deste. Se pudesse, ele roubaria tantos livros que já nem teria tempo de examiná-los. É roído pelo frenesi da posse (2010, p.39-40).

“O maior ladrão de livros que a história da bibliomania registra é um senhor que se chamava, nomen omen, Guglielmo Libri”, conta Eco, visitante de bibliotecas abandonadas da França, localizava e classificava obras raríssimas esquecidas. “Libri deve ter exagerado: o fato é que à sua atividade seguiu-se um escândalo público, e nisso ele perdeu todos os seus cargos e a reputação, tendo acabado sua vida no exílio, perseguido por mandados de captura” (2010, p.40). Eco relata ironicamente que não sabe dizer o quanto Libri era culpado, mas pelo que havia acumulado, cerca de quarenta mil textos antigos, entre livros e manuscritos raros, era, de fato, um “bibliófilo: achou que aqueles livros estariam melhor em sua casa, paparicados e amados, do que em alguma biblioteca de província onde ninguém jamais os procuraria. Mas, por ter amado muitos, sem dúvida não terá podido amá-los um por um”. Mais que bibliófilo, Libri era, assim, um bibliômano.

O editor

No mesmo livro Bibliopola I, Cleber marca com sua tirinha de papel o verbete “The Publisher (208-220)” / “L’éditeur (208-220)” / “Der Verleger (208-220)”, ou seja, O editor (208-220), que aborda características desse trabalhador por trás da publicação de livros, um trabalho invisível, cuja maioria preferiu fazer em reclusão, “denunciados”, por outro lado, pelos livros que publicaram, que fazem depreender sua personalidade e inclinações. No passado, o editor e o livreiro eram a mesma pessoa, portanto mais acessíveis do que o editor de hoje, nos conta o verbete.

Mas o que deve ter feito Cleber marcar a página talvez tenha sido a bela imagem que seguiu: a mesa do editor é mais ou menos o seu mundo, onde toma decisões e, a partir disso, estica os fios invisíveis que o ligam ao autor, ao livreiro, ao leitor. Por outro lado, apesar do quadro encantador, complementa, a realidade era geralmente mais monótona e sóbria. A ilustração (217) destaca a solidão do trabalho do editor, descreve o verbete, uma mesa repleta de manuscritos; sentado nela está o editor, que deve julgar e tomar decisões, preocupado se as suas preferências pessoais e escolhas serão aprovadas por livreiros e leitores. Ele sabe que, uma quebra nesta cadeia, será uma decepção que poderá causar grande perda.

No desvelar da carta inacessível, como editora das peças que encontrei marcadas pelo idioma-leitor de Cleber, vejo o quanto esta pesquisa é apenas a possibilidade de um começo e, como o editor de livros, sobre a mesa o mundo é vasto – e o mundo do leitor criado na sua biblioteca, então, clichê mesmo: é infinito. Mas desses primeiros achados, sinto perceber, na maneira como o acaso apontou sinais, como a leitura movia o fazer de Cleber, suas relações e seu ilimitado “exoesqueleto mental”. A Crônica de Nuremberg e os incunábulos como pautas para uma conversa com café; da oportunidade de ter nas mãos um mesmo livro tocado pelo tipógrafo Aldus Manutius, sua grande admiração como editor de livros; o editor de livros se mostrando a partir das escolhas que faz; a paixão por livros e as histórias verídicas e ficcionais protagonizadas por bibliófilos – sem contar todas as outras categorias da biblioteca particular, além das coleções de revistas e suplementos.

Procurando me manter no recorte, vasculho um pouco mais esse ser instigante, o bibliófilo, sóbrio ou entregue à paixão, como aquele “taciturno e sonhador, carrancudo e triste; [que] não tinha senão uma ideia, um amor, uma paixão: os livros; e esse amor, essa paixão [que] queimavam-no interiormente, consumiam-lhe os dias, devoravam-lhe a existência” (FLAUBERT, 2001, p.18). O desejo febril que tomou alguns homens capazes de matar, morrer, roubar em nome dos livros, ou, na via mais comezinha e desapaixonada, capazes de colocar o dinheiro, que a raridade ao alcance da mão pudesse render, acima da ética e das amizades. Mas nem todo bibliófilo precisou se esforçar ou resvalar para o perfil de bibliômano, cometendo algum deslize para ter a coleção de livros mais incrível e rara do mundo, alguns só precisaram de um bom catálogo inventado.

 

 

Bibliotecas imaginárias

 

 

A tira de papel estava entre as páginas 224 e 225 de “A biblioteca à noite”, de Alberto Manguel. Cleber marca as páginas que falam sobre o momento em que Jorge Luis Borges cegou até quando assumiu o cargo de diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. A partir dele que Manguel traça a lembrança de bibliotecas imaginárias. “Muitas das histórias e ensaios publicados por Borges fazem menção a livros que ele inventou sem se dar ao trabalho de redigi-los”. Não sei o que chamou a atenção de Cleber. Se o trajeto de Borges lembrado por Manguel – da certeza de sua cegueira desde a adolescência ao episódio em que deixou de ver e entrou na “escuridão visível”, a que Milton julgava ser o inferno; se os detalhes de sua nomeação a bibliotecário, ou se a lista de livros inventados por ele, citados por Manguel:

[…] as várias histórias romanescas do fictício Herbert Quain (tema de uma ficção em tom ensaístico), que varia uma mesma trama em progressão geométrica, até que o número de tramas se torna infinito; o maravilhoso romance policial Aproximação a Al-Mu’tasim, de ‘Mir Bahadur Ali, advogado em Bombaim’, supostamente resenhados pelos realíssimos Philip Guedalla e Cecil Roberts e publicado em Londres pelo igualmente real Victor Gollancz, com uma introdução de Dorothy L. Sayers, sob o título modificado para Diálogo com um homem chamado Al-Mu’tasim: um jogo de espelhos móveis; o décimo primeiro volume da Primeira Enciclopédia de Tlön, recebido por Herbert Ashe, pouco antes de sua morte, num pacote selado e registrado no Brasil; a peça inacabada Os inimigos, que Jaromir Hladik pôde completar mentalmente num longo instante, concedido por Deus, logo antes de sua execução; e o volume in-octavo de páginas infinitas, com as palavras “Sagrada Escritura” e “Bombaim” impressas na lombada, que Borges (diz o próprio) teve em mãos pouco antes de se aposentar do cargo de diretor da Biblioteca Nacional (MANGUEL, 2006, p. 225-226).

O trecho faz parte do capítulo 13, no ensaio “Imaginação”. Eu imagino que a lista de livros inventados é que importaram a Cleber, e o que corrobora minha impressão é que, num café com Regina Melim, grande amiga de Cleber e minha interlocutora nesta pesquisa, soube um pouco mais sobre o catálogo do Conde Fortsas, em que Cleber participou montando e imprimindo em tipografia uma errata para a edição de 130 exemplares, impressa em serigrafia, pela Editora Dantes e À Colecionadora, em 2007.

Trata-se do “Catálogo de uma muito rica mas pouco numerosa coleção de livros provenientes da biblioteca do falecido Sr. Conde J.N.A de Fortsas”, que só aceitava um livro na sua coleção se fosse comprovado que dele só existia um exemplar. Essa coleção singular seria vendida no leilão anunciado para 9 de agosto de 1840, às 11 horas da manhã. Isso, se não fosse uma grande farsa de autoria do tipógrafo belga Renier-Hubert Ghislain Chalon. A lista de livros era inventada e o leilão nunca aconteceu.

 

 

História universal do livro

Um dos livros com mais sinais de Cleber é o “Historia universal del libro”, de Hipólito Escolar (Fundación Germán Sanchez Ruipérez, 1993).

  1. Sinal entre as páginas 292 e 293, que tratam sobre os chamados “Livros de horas”– um gênero de manuscritos luxuosos que teve grande difusão nos séculos finais da Idade Média, destinados a reis, rainhas, alta nobreza e demais pessoas endinheiradas – e que continham textos evangélicos e de meditação, dispostos de acordo com a hora em que deveriam ser lidos. De tamanho pequeno, fácil de segurar com apenas uma mão, poderiam ser levados para qualquer lugar. Normalmente eram exemplares personalizados e ilustrados por grandes artistas.
  2. Entre as páginas 338 e 339, em que há o subtítulo “La época incunable”, que traz uma discussão sobre a linha temporal que divide o que é considerado incunábulo, afinal a obra de grandes impressores, como Aldo Manucio [Aldus Manutius], Anton Koberger, Antoine Vérard e Johannes Froben se realizou entre os dois séculos – há historiadores que propõem alargar a época incunábulo até meados do século XVI, por responder a situações e fechamentos históricos diferentes de cada país, e também porque incluiria o “incunábulo americano”, por ser o primeiro século em que se conheceu a imprensa no “Novo Continente”.
  3. Entre as páginas 394 e 395, com uma fina tira de papel escrito “FABA, DOMENICO”, que se trata de menção à referência bibliográfica “Faba, Domenico: Manuale degli incunabli, Milano, 1953.
  4. Entre as páginas 406 e 407, onde temos o subtítulo “Aldo Manucio”, por quem Cleber tinha grande admiração. Sua atividade como impressor e editor se dividiu entre dois séculos (1495-1515) e ele representou uma nova figura, a de editor educador, que embarca na aventura do livro para facilitar o acesso à cultura. Aldo representa a união entre o impressor e o humanista que, apesar de seus poucos recursos econômicos, influiu nas correntes de pensamento, difundindo obras decisivas para determinadas épocas.
  5. Entre as páginas 444 e 445, que tratam de editores da França e da imprensa em Lyon.
  6. Entre as páginas 450 e 451, que tratam de Cristobal Plantino, impressor e editor importante na segunda metade do século XVI, que imprimiu mais de 1.600 livros, incluindo a Bíblia Regia poliglota, ou “Políglota de Arias Montano” (1572).
  7. Entre 476 e 477, sobre a primeira imprensa aberta na América do Norte.
  8. Entre 518 e 519, sobre o livro na Grã-Bretanha e Baskerville;
  9. Entre 522 e 523, a imprensa na Itália e Bodoni;
  10. Entre as páginas 564 e 565, que tratam de mudanças na comercialização de livros no século XIX, com a necessidade do editor fazer anúncios, confeccionar catálogos, contratar viajantes vendedores e oferecer assinaturas, além dos folhetins e entregas periódicas. Por sinal, acessamos a mesma imagem do editor que aparece em Bibliopola I, inteira, e que agora podemos saber se tratar de uma ilustração feita por P. Gavarni.

  1. Por último, entre 598 e 599, sobre jornais e a imprensa, especialmente na Espanha.

 

 

 

De fragmento em fragmento, de livro em livro: inestimável serviço

 

Entre as páginas 384 e 385 do livro “A longa viagem da biblioteca dos Reis: do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil”, de Lilia Schwarcz com Paulo Cesar de Azevedo e Angela Marques da Costa, encontro mais uma tira de papel deixada por Cleber, o trecho fala da emancipação do Brasil:

[…] nossa emancipação não deixou de ser comum, mesmo se mostrando tão particular, na sua saída imperial e conservadora. Se o movimento foi liberal na medida em que rompeu com a dominação colonial, revelou-se conservador ao manter a monarquia, o sistema escravocrata e o domínio senhorial. Além do mais, apesar de todo processo de emancipação ter sido deflagrado pela vinda da corte, o que explica o sucesso final é o movimento interno de ajustamento às pressões de dentro e de fora, e sobretudo, como diz a historiadora Maria Odila Silva Dias, o “processo de interiorização da metrópole no Centro-Sul da colônia”, que levou a mudanças estruturais e nas mentalidades locais. Por outro lado, se uma unidade política foi implantada, prevaleceu uma estrutura semelhante de poder e uma noção estreita de cidadania, que alijou do exercício da política vasta parte da população e sobretudo os escravos. Com isso noções frouxas de cidadania e de representatividade das instituições políticas se impuseram entre nós, mostrando como a Independência criou um Estado, mas não uma Nação”.

Dar uma cultura, imaginar uma formação, pretender uma nacionalidade: aí estava uma tarefa para a agenda futura. E nesse quesito a Biblioteca ocuparia um lugar especial, junto com outros arranjos mais imediatos do primeiro Reinado (SCHWARCZ, 2002, p.385).

Encontro também dois exemplares do livro “Livros e bibliotecas no Brasil Colonial”, de Rubens Borba de Moraes: um deles com marcação entre as páginas 104 e 105. Imagino que Cleber tenha sido atraído pelas curiosidades em relação aos primeiros anos de implantação da Imprensa Régia. Entre elas, o fato de que sempre teve dificuldades financeiras e que, para aliviar o perrengue e garantir renda, o governo anexou a Fábrica de Cartas de Jogar, em 1811. “Com excelentes lucros do negócio de baralhos a Impressão Régia tinha uma renda que lhe permitia viver apenas. Trabalho não faltava, mas a capacidade da oficina não permitiu a publicação de mais de umas poucas obras anuais entre 1808 e 1820”.

A revolução do Porto em 1820 trouxe uma relativa liberdade de imprensa e abriu caminho para as grandes agitações políticas que levariam à Independência. O número de proclamações, de folhetos políticos de toda a sorte aumentou de tal maneira que, embora a tipografia produzisse 239 trabalhos em 1821 e 289 em 1822, estava sempre com o serviço atrasado e com originais à espera. […] A Impressão Régia tinha dificuldade em imprimir a tempo e a hora toda legislação produzida continuamente pelo governo apesar dos novos prelos que adquiria. Sobrava pouco tempo para publicar livros e mal dava conta dos folhetos encomendados por particulares. Obras maiores, livros com mais de cem páginas que imobilizavam grande quantidade de tipos, sofriam atrasos (MORAES, 1979, p. 104-105).

Colecionando fragmentos sinalizados por Cleber, proponho esta montagem, fragmento a fragmento, porque me parece mapear o percurso do leitor, um caminho que, ao percorrê-lo, nos leva ao intelectual. A forma como Cleber pensava e defendia o acesso aos livros, consciente da dificuldade histórica no país, vem ao encontro de sua formação leitora. Fica evidente no prefácio que escreve para o livro “Memórias esparsas de uma biblioteca, com José Mindlin; entrevista a Cleber Teixeira e Dorotheé de Bruchard, defendendo as bibliotecas particulares como um serviço inestimável ao país:

A bibliofilia, este amor desmedido mas lúcido, atende primeiro um desejo pessoal, sabemos, mas presta inestimável serviço ao país ajudando o Estado, nem sempre tocado deste amor necessário ao trato dos bens culturais, quase sempre sem recursos e obrigado a atender carências que não podem esperar; a preservar um patrimônio sempre em permanente risco de destruição, seja por não contar com instalações adequadas ou, no caso dos bens que têm o papel como suporte, por ação das traças e dos cupins, esses leitores insaciáveis. Impressos e manuscritos estão sempre muito bem cuidados em bibliotecas privadas. A preservação do patrimônio impresso, de matrizes gravadas, dos manuscritos etc. (e não apenas os brasileiros) é um serviço público inestimável que os bibliófilos prestam ao país (TEIXEIRA, 2004, p. 16-17).

No livro “A paixão por livros”, organizado Julio Silveira e Martha Ribas, Cleber deixa uma marca no texto “Minhas bibliotecas”, de Varlam Chalámov. Um texto muito bonito sobre a relação com  as bibliotecas públicas e salas de leitura. Cleber destaca o trecho em que Chalámov achava que conseguiria formar uma biblioteca particular, mas a tentativa não durou muito. Era uma época de edições proibidas na Rússia. Nos anos 1930, “a delação foi elevada à condição de valentia” e um cunhado, que vivia no mesmo apartamento, de tempos em tempos revistava aposentos:

“- Aqueles livros são seus?

– ?

– Os de Leskov?

– Sim.

– Concorde que é literatura suspeita…

Bati a porta na sua cara (2004, p. 81).

Chalámov termina seu texto dizendo que “Livros são a melhor coisa que temos em nossas vidas; eles são nossa imortalidade” e se lamentando por nunca ter tido a sua própria biblioteca.

Princípio-biblioteca

Numa das manhãs de pesquisa no Instituto Casa Cleber Teixeira, na presença da arquiteta Maria Elisabeth Pereira Rêgo, companheira de Cleber, pude ler um bilhete manuscrito, guardado entre arquivos pessoais. No processo de tentar acessar na biblioteca aquela carta escondida num envelope que não podia ver, seguindo o método entre audição e tato, este foi um dos encontros com Cleber mais ao acaso e, também, mais direto. Transcrevo abaixo o relato de Cleber Teixeira sobre como começou e deu continuidade à sua biblioteca particular.

Os Livros

– Lembro, não com precisão de um bom memorialista, quando meu pai me deu de presente o Lello Universal (2 pesados volumes)¹, o TESOURO DA JUVENTUDE e a obra completa de Monteiro Lobato. Eu devia ter oito ou nove anos. Foi um deslumbramento. Ainda hoje consulto regularmente o Lello. A partir daqueles livros dei início a criação da minha biblioteca. Nunca mais parei de adquirir livros. Projeto ambicioso para quem dispõe de modestíssimos recursos. Hoje, 54 anos depois, tenho uma boa biblioteca. E até mesmo algumas raridades. Fui atrás dos livros, vasculho sebos e não menosprezo nem mesmo o mais modesto vendedor de livros usados que monta sua banca na calçada. E não esqueço a generosidade de muitos amigos que me presenteiam com livros. Hoje tenho mais colaboradores importantes: meus filhos (todos os 4 adultos) que não deixam de visitar sebos em busca de um “presente para o pai”. Como eles viajam muito mais do que eu, amenizam um pouco esta minha deficiência na caça aos livros fora da “minha jurisdição”.

¹dicionário enciclopédico editado em Portugal.

Limite de que não se pode passar

Se era para mim ou não, a carta, se era imaginada, o que sei é que o envelope invisível poderia estar espalhado por todos os cômodos da Casa-Biblioteca, porque é possível encontrar sinais legíveis da presença leitora de Cleber para além das estantes. Se cada visita me fazia voltar ao começo, sempre levada ao acaso, depois de ler alguns vestígios era impossível deixar de fazer algumas perguntas. Sabia que a Biblioteca toda guardava preciosidades e exemplares únicos; se não em edição, em importância. Mas, como bibliófilo, onde guardaria os livros especiais? Nessa busca pelo colecionador ausente, havia um lugar para a presença desses livros que, agora sendo listados, permanecerão aos cuidados do Instituto Casa Cleber Teixeira. Por enquanto e aqui: nec plus ultra.

Correspondência

Na minha interlocução com Regina Melim, soube do quanto Cleber Teixeira gostava de assistir ao filme “84 Charing Cross Road”, dirigido por David Hugh Jones em 1987. A troca de cartas entre a escritora norte-americana Helene com o livreiro britânico Frank, uma amizade construída pelos livros e irradiada para os que estavam ao redor, me parece se relacionar plenamente com Cleber, que também endereçou e recebeu diversas missivas. Mas há uma cena em que Helene lê a meditação XVII (1623) de John Donne, que não pude deixar de anotar. Diz que, nessa tradução parafraseada: “a humanidade, como um todo, forma um grande livro; quando um homem morre, um capítulo não é arrancado, mas traduzido para um idioma melhor. Cada capítulo é traduzido, por vários tradutores – alguns trechos são traduzidos pela idade, outros por doenças, alguns pela guerra, mas a mão de deus reúne todas as folhas soltas e as coloca naquela biblioteca em que os livros se abrem uns para os outros”.

Como leitores também nos abrimos uns para os outros. Quando acessei o idioma do Cleber-leitor se revelou meu primeiro erro de “tradução”: o que se destacou da Cultura do Livro na coleção dele não foi o interesse pela Escrita, como eu supunha, mas a paixão pelos livros, a vida de bibliófilos, a busca pelos livros raros, antigos, especiais, únicos; a troca com os amigos e o trabalho de editor-tipógrafo-impressor. “A lei de toda busca: nada conhecer do objeto buscado, conhecer apenas algo de si mesmo”, como disse Nathalie Léger e, ao ter começado assim, termino ressaltando a necessidade de mudar a premissa da pesquisa para “Cultura do livro: Bibliofilia”. Assumi isso, pois, antes movida pelo interesse pessoal pela escrita, vi desarmar toda suposição do meu diálogo com Cleber.

Foi preciso compor outra maneira. Um exercício de alteridade que só a leitura nos ensina a fazer. O tema da Bibliofilia talvez seja o mais distante de mim, da minha trajetória e cultura, mas a leitura amplia, não limita. E assim pude compor outro modo: para acessar o bibliófilo-leitor, passei a mirar mais a carta escondida do que as hipóteses, e buscar sentir a carta em vez de tentar decifrá-la – ler demoradamente o material branco mais do que os tipos. Se verdadeiramente acessei a carta de Cleber que eu pressentia, esse mistério no interior de um envelope invisível, não sei. O fato é que, incapaz de traduzi-lo para um idioma melhor, pude apenas compilar vestígios, compor fabulação.

Referências bibliográficas

BARTOLOMÉ, Manuel; VIDAL, María. Escritos y dichos sobre el libro. Barcelona Edhasa: 2000.

DONNE, John. The complete poetry and selected prose of John Donne. Nova Iorque: Modern Library, 1994.

ECO, Umberto. A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia. Tradução de Joana Angélica d’Ávila. Rio de Janeiro: Record, 2010.

ESCOLAR, Hipolito. Historia universal del libro. Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 1993.

FARIA, Maria Isabel Faria; PERICÃO, Maria da Graça. Dicionário do livro: da escrita ao livro eletrônico. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

MANGUEL, Alberto. A Biblioteca à noite. Tradução Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

MEXICO, Secretaría de Hacienda y Crédito Público. Antologia. Los escritores y los libros. México: Direccion General de Prensa, Memoria, Bibliotecas e Publicaciones, 1960.

MINDLIN, José. Memórias esparsas de uma biblioteca. Entrevista a Cleber Teixeira e Dorothée de Bruchard. São Paulo: Imprensa Oficial; Florianópolis: Escritório do Livro, 2004.

SCHOPENHAUER, Arthur. Über Lesen Und Bücher – Sobre livros e leitura. Tradução de HUMBLÉ, Philippe & COSTA, Walter. Editora Bilíngüe, Florianópolis: Paraula, 1993.

SCHWARCZ, Lilia M.; AZEVEDO, Paulo César de; COSTA, Ângela Márquez da. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002

SILVEIRA, J. e RIBAS, M. (orgs.) A paixão pelos livros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2004.

TAUBERT, Sigfred. Bibliopola I –  Bilder und Texte aus der Welt des Buchhandels / Pictures and Texts about the Book Trade / Images et Textes sur la Librairie. Alemanha: Dr. Ernst Hauswedell & Co Hamburg, 1966.

Filme

84 Charing Cross Road. Direção de David Hugh Jones. Reino Unido/EUA: Columbia Pictures, 1987 (100 min).

realização:

Projeto selecionado pelo Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura – Edição 2020, executado com recursos do estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Catarinense de Cultura.